quinta-feira, 8 de maio de 2014

SCHADENFREUDE OU FILOSOFIA DE BOTEQUIM



SCHADENFREUDE OU FILOSOFIA DE BOTEQUIM
Rubem Fonseca
Eu acordo cedo e vou andar nas ruas. Às seis da manhã entrei no boteco ordinário, apelidado por mim, amigavelmente, de Xexelento, e pedi um cafezinho. Nesse momento um sujeito grande entrou no boteco, com um jornal na mão e disse: “Hoje é o Dia Internacional da Mulher”.
Eu comecei a dizer “É um dia de festa…”, mas o homem – vamos chamá-lo de Grandão – não me ouviu, ou não se interessou pelo que eu ia dizer, ou então tinha uma mensagem urgente que queria transmitir aos demais homens do boteco. Era o caso. “Vamos comemorar o Dia da Mulher lendo esta noticia da primeira página do jornal”. Leu a manchete: “Bombeiro conta tudo, ele namorava a modelo. Vocês viram, o bombeiro comia aquela vadia da Luma de Oliveira”.
“Dá licença”, eu o interrompi e ele calou a boca. “Quando o senhor entrou aqui e falou no Dia Internacional da Mulher, eu comecei a dizer que era um dia de festa, e o senhor não me ouviu. É um dia que deveria lembrar a todos nós que a mulher deve ser tratada com amor, respeito, consideração e carinho. Todas as mulheres, inclusive a que cozinha para nós. E a mãe da gente também.”
“Essa Luma é uma mulher sem-vergonha, falsa.”
“Não é. É apenas uma narciso-exibicionista.” (Acho que inventei essa palavra).
“O que isso?”, perguntou um cara que tomava uma média e comia um “joelho”, uma coisa feita no forno com recheio de queijo e presunto.
Pensei em contar a lenda do jovem que se apaixona por si mesmo ao ver sua beleza refletida na água, mas contive-me. Disse apenas: “Uma pessoa que gosta da sua própria beleza”.
“Precisa tirar foto pelada na ‘Playboy’?”
“Veja bem, ela se acha bonita, todos a acham bonita e tirar foto pelada é uma forma que ela encontra de imortalizar a própria beleza, que tanto fortalece sua auto-estima e a deixa feliz, beleza que ela sabe, de maneira consciente ou inconsciente, que um dia vai desaparecer. Muitas e muitas mulheres bonitas gostariam de posar nuas para a ‘Playboy’e se não posaram é porque não foram convidadas, ou não são suficientemente narcisistas para isso, ou não têm coragem.”
“Você é professor?”
“Só dou aula em botequim. Posso continuar? Mais um minuto.”
“Pode”, disse o Grandão. Há uma tendência da minoria de aceitar que os mais fortes decidam por ela, e assim os raquíticos nada disseram.
“Você falou falsa? Ela por acaso é presidente da Liga da Decência e estava enganando meio-mundo? Porra, ela tirava foto pelada, desfilava pelada, não é nenhuma hipócrita, não comete qualquer impostura e falsidade, nós sabemos quem ela é, ela nunca escondeu nada de nós – corpo e alma. Essa moça não faz mal a ninguém, e se alguém pode se sentir ofendido pelo episódio é apenas o marido.”
Ficamos calados, tomando café ou comendo as gororobas horrendas do Xexelento.
Aproveitei o silêncio, já que agora eu tinha também a atenção dos dois garçons: “Sabem quem são os vilões dessa história?”
“Vilões?!”
“Os bandidos. Ela é a ‘mocinha’da história. Sabe quem são os bandidos?”
Outro silêncio.
Continuei: “Os bandidos são, pela ordem: a imprensa, o bombeiro e nós. A imprensa, que não se envergonha de ter um comportamento desses apenas por mercantilismo, para vender mais anúncio de cerveja; o bombeiro, que por vaidade não hesita em cometer uma vileza, para andar pelas ruas, ser apontado com admiração pelos circunstantes, que dizem “lá vai o cara que comeu a Luma de Oliveira” – e quem sabe, ele talvez seja convidado para participar do próximo ‘Big Brother’, ou então para ter o seu próprio programa de televisão. E finalmente o vilão final somos nós, todos nós, que gostamos da sensação do schadenfreude, esse invejoso prazer que sentimos ao constatar a desgraça, o opróbrio dos outros.”
“Agora ficou difícil, professor”, disse o Grandão.
“Obrigado, pela atenção de todos. Bom dia.” Coloquei dez pratas na frente do Grandão. “Quando você for para casa, leva umas flores para a sua mulher.”
Fui andando pela rua, pensando: vale a pena trabalhar para as mulheres.

Texto extraído do site “Porta Literal”:
http://www.literal.com.br/acervodoportal/schadenfreude-ou-filosofia-de-botequim-6475/

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