The Matrix - Denso e intrincado.
Matrix é grandioso! Denso e intrincado, é uma ótima história em ritmo de cinemão e expõe a nova e intrigante fronteira que não mais poderemos evitar: a questão do que é de fato a Realidade.
Com o advento da realidade virtual e realidade apliada, ultrapassamos o ponto de retorno e teremos agora que encarar mais esse desafio sobre as possibilidades da Psique.
Matrix é forte e seu conteúdo, tão rico que me frustra ter de escolher apenas um ângulo a comenntar.
Escolhi o ângulo da mitologia.
Mitos são como esqueletos da Psique, imprescindíveis à sua compreensão.
Em Matrix, reedita-se um velho tema que se repete desde nossos mais remotos e peludos antepassados: a jornada do herói, uma metáfora do processo de crescimento psicológico e auto-realização do ser humano.
O herói, nos mitos, somos cada um de nós, representados num personagem que geralmente precisa abandonar sua terra (a segurança de velhas certezas) e partir em busca de algo precioso (verdades mais úteis e abrangentes) ou enfrentar inimigos terríveis (encarar os próprios medos e bloqueios). Jornada difícil, e perigosa, que requer coragem, obstinação e honestidade. Mas o herói vence o desafio e retorna à sua terra, levando benfeitorias a seu povo e muitas vezes substituindo um velho rei doente ou injusto (renovação), tipo o clássico hobin hood.
Neo, o herói de Matrix, aventura-se numa realidade que parece sonho, partindo em busca de um mistério que pode enlouquecê-lo e até matá-lo. Ele se recusa a crer que possa ser o Predestinado de que fala a profecia e que mudará o mundo e despertará as pessoas. Essa dúvida faz com que o Oráculo consultado não o esclareça. Oráculos são meros instrumentos de auto-investigação psicológica onde podemos obter respostas sobre nós mesmos através de concentração e meditação. Até que nem tanto esotérico assim. A rigor ninguém precisaria de um oráculo pra saber sobre si. No entanto, o ritmo de vida atual nos afastou de nosso mundo interior e são exatamente o simbolismo e a ritualística dos oráculos que propiciam a interiorização. Na verdade quem responde à questão lançada somos nós mesmos, ou melhor, uma parte mais sábia de nós que não costumamos escutar no dia-a-dia. Se a resposta é obscura, é porque a pergunta também o foi. A pergunta certa já contém em si a resposta.
Neo consulta o Oráculo. Mas a idéia de ser o Predestinado o incomoda e ele obtém a resposta que deseja. Porém, atente: o Oráculo não diz em momento algum que ele não é o Predestinado. Diz apenas que ele ainda não está preparado. Preparado pra entender que de fato é. E quanto a isso, ninguém pode fazer nada, nem oráculos nem deuses nem ninguém.
A jornada pessoal de auto-realização nos mete em situações onde não confiamos em nosso potencial.
Acho que não podemos lembrar Smith, o agente, sempre lembra que ele é humano, chamando de Mr. Anderson, ironico?
Somos capazes de muitas coisas quando temos perfeita consciência de quem somos e do que podemos fazer. Porém chegar a essa autoconscientização é difícil. Conhecer verdadeiramente quem somos é luta armada, travada no campos da consciência e do inconsciente, guerra de toda uma vida onde cada auto-revelação representa uma importante batalha vencida. O verdadeiro conhecer-se dói pra danar porque implica necessariamente enfrentar o que se teme, tornar-se o que se evita ser, entrar no fogo dos piores medos. A recompensa é o mundo novo que a realização mais íntima nos traz.
No mundo de Matrix as pessoas estão adormecidas e sem senso crítico. Acreditam no que lhes é dado a crer. Nada muito diferente de nosso mundo atual, onde a massificação das idéias faz as pessoas perderem a noção de si mesmas, onde querem nos convencer que numa sociedade desonesta e violenta temos de ser mais violentos e desonestos que os outros. Difícil fugir desse círculo vicioso. Em Matrix, Neo sofre o diabo pra aprender que tudo que ele precisa é... mudar a visão que tem de si próprio, apenas isso. Não pense que é, saiba que é. A profecia diz que o Predestinado mudará o mundo e salvará a humanidade. Neo não pode acreditar que seja capaz disso tudo. Mas o segredo pra vitória do herói esconde a mais simples e a maior de todas as ironias: pra mudar o mundo, basta mudar a si mesmo. Transforme-se e tudo em volta se transformará - eis o segredo! Porque a aparente separação das coisas esconde a unicidade de tudo que existe. Talvez seja impossível dobrar uma colher com o pensamento. Mas se você sabe que a colher e você são a mesma coisa então, eureka!, basta dobrar a si mesmo.
O mito da jornada do herói nos ensina que o destino de cada um de nós é realizar o que verdadeiramente somos mas ainda não aceitamos. A aventura de Neo é a aventura de nós todos em busca de nossa essência mais legítima, aquela que enfim nos libertará. Até alcançá-la, a vida nos provará de muitos modos e conviveremos com dolorosas incertezas e auto-enganações. No entanto, indo do micro pro macro, a aventura de Neo é da humanidade inteira, em busca de sua sobrevivência como espécie. Num tempo de tecnologia idolatrada e valores essenciais esquecidos, corremos o risco de ver nossa própria criação voltar-se contra nós. Ante tal possibilidade, a única saída parece ser, ainda, seguir o que dizia, logo em sua entrada, o Oráculo de Delphos na Grécia Antiga e também o oráculo de Matrix: conhece-te a ti mesmo. A tecnologia não tem sentimento. Nós temos. Uma máquina não é capaz de amar. Nós somos. Essa diferença óbvia pode pesar bastante no roteiro do nosso filme.
Como Neo, somos predestinados a realizarmos a nós mesmos. Feito um Salvador, cada um de nós tem o poder de mudar o mundo. Mas é preciso antes mudar a forma como entendemos a nós próprios. Eis o segredo que se esconde por trás do filme Matrix e também de toda a vida. O segredo que de tão óbvio não se vê e que aguarda pacientemente por todos os predestinados.
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